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Uma homenagem ao Gerhard Malnic, uma das principais referências da fisiologia renal no Brasil

 

 

 

 

 

 

Por Vagner Antunes, chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas, Universidade de São Paulo. 

 

 

É com profunda tristeza e pesar que informamos a todos da morte do professor titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e Emérito do ICB, Gerhard Malnic, ocorrida no dia 25 de fevereiro de 2023.

 

 

Professor Malnic, como muitos o conheciam, nasceu em Milão, na Itália mas era filho de austríacos, Erich Malnic e Suzann Spieler Malnic. O pai era Químico especializado em corantes e foi contratado por uma indústria química alemã para vir ao Brasil. Inicialmente mudou-se para Rio de Janeiro e depois para São Paulo para trabalhar na indústria de tecidos dos Matarazzo, no bairro do Belenzinho. Nesse momento, Malnic tinha 4 anos de idade e naturalizou-se brasileiro aos 23. Ele estudou no Colégio Visconde de Porto Seguro a partir de 6 anos de idade, onde se destacou como um dos melhores alunos. Em casa também aprendeu um pouco de latim e grego porque o pai achava importante.

 

 

Sempre gostou de química e queria ser químico como o pai, tendo até um pequeno laboratório de química em casa. No entanto, o pai na época sugeriu “Olha, aqui no Brasil a melhor faculdade é a de medicina, é melhor você fazer medicina”. O garoto Malnic seguiu o conselho do pai e ingressou na Faculdade de Medicina da USP em 1952, em primeiro lugar, formando-se em 1957. Durante sua formatura, ele foi premiado como o melhor aluno durante os seis anos consecutivos da Faculdade de Medicina.

 

 

O encanto com a fisiologia

 

 

O interesse pela fisiologia começou no segundo ano do curso de medicina e, a convite feito pelo Professor Alberto Carvalho da Silva, que percebeu o entusiasmo do aluno, juntos leram um livro do fisiologista americano Homer Smith (livro este guardado até hoje com muito apreço).

Com o tempo decidiram que Malnic iria trabalhar com fisiologia renal, focando no estudo sobre excreção renal de vitamina B1 ou tiamina em cães. A novidade era tanto estudar excreção renal de vitaminas como trabalhar com cães. Este trabalho resultou no primeiro artigo científico, com o Professor Alberto, no American Journal of Physiology, ainda uma das mais prestigiosas revistas de fisiologia.

 

 

Em 1959, Malnic e Professor Alberto foram juntos ao Congresso Mundial de Fisiologia, organizado pela International Union of Physiological Societies (IUPS) em Buenos Aires, e lá se encontraram com o Professor Robert Franklin Pitts, que era um dos maiores fisiologistas renais da época. O Prof. Pitts disse: “Eu tenho dois jovens que estão começando a trabalhar comigo e eles falam alemão e estão começando com uma área nova da fisiologia”, que era a micropunção de túbulos renais.

Naquele livro do Homer Smith descrevia-se como era feita a micropunção, como puncionar túbulos renais e obter amostras. Essa técnica teve início entre o final dos anos de 1920 e início dos 30 e permitia estudar em detalhes o funcionamento dos túbulos e também dos glomérulos renais.

 

 

Foi então que o Pitts disse ao Malnic para ir ao seu laboratório, na Cornell University Medical College, em Nova York. Malnic consegui uma bolsa da Fundação Rockefeller, um programa para estimular a ciência latino-americanica e que auxiliou significativamente o fomento à pesquisa no Brasil, pois naquela época não havia a FAPESP.

 

 

Assim, em 1961-1962, antes de ir para a Cornell University, Malnic foi fazer um ano de estudos básicos na Tulane University, em New Orleans estudando, matemática, bioquímica e físico-química que foram primordiais para seus interesses em mecanismos de transporte iônico. Depois desse período, Malnic foi para o laboratório do Pitts onde encontrou os dois jovens pesquisadores que falavam alemão), Gerhard Giebisch e Erich Windhager, e eram austríacos, por coincidência.

 

 

Gerhard Giebisch era um fisiologista renal que já tinha uma boa experiência em micropunção renal. Ele trabalhou durante algum tempo com uma pesquisadora, Phillis Bott, que havia trabalhado com o A.N. Richards, pioneiro no desenvolvimento da técnica de micropunção de túbulos renais. Bott trabalhava no Women’s Medical College de Philadelphia, uma faculdade de medicina para mulheres, pois naquele tempo existia uma faculdade só para mulheres.

 

 

Assim, Giebish e Malnic desenvolveram juntos o método para fazer microdosagem de potássio e, daí, estudaram os mecanismos de excreção de potássio, conseguindo observar como se dava a excreção de potássio nos vários segmentos tubulares renais. Publicaram vários artigos em conjunto, entre esses destaca-se o Micropuncture study of renal potassium excretion in the rat, 1964.

 

 

Retorno à USP

 

 

De volta à USP, em 1964, implantou o laboratório de micropunção e microperfusão renal na Faculdade de Medicina, utilizando metodologias experimentais inexistentes no Brasil na época.

 

 

Quando estava para retornar ao Brasil, Giebisch ligou para a Bott, ue estava se aposentando e perguntou: “Você tem algum equipamento sobrando aí?” Ela disse que sim e, então, alguns equipamentos foram doados ao Prof. Malnic, que os trouxe para a Faculdade de Medicina. Naquele tempo Malnic ganhou também um microscópio da faculdade, que o professor Alberto conseguiu para ele, e assim como uma série de outros aparelhos, dentre eles micromanipuladores, dosador de cloreto, etc. Esses equipamentos em conjunto foram fundamentais para que Malnic pudesse começar a trabalhar no desenvolvimento dos seus próprios projetos científicos, podendo aplicar as novas técnicas experimentais tanto na Faculdade de Medicina quanto no Instituto de Ciências Biomédicas, na Cidade Universitária, para onde se mudou em 1972.

 

 

Apesar das dificuldades iniciais, o Prof. Malnic conseguiu fazer bastante coisa, construindo equipamentos com as próprias mãos. “Bom, vamos fazer alguma coisa que dê para fazer com o que tenho: vou fazer micropunção, e alguma coisa com cloreto”, palavras dele. Para tal era necessário obter uma amostra de fluido tubular e fazer dosagens bastante complexas. Pouca gente fazia esse tipo de abordagem experimental, pois era muito difícil de fazer. Mas Malnic era e sempre foi muito persistente e, com isso, consegui impulsionar o estudo na Faculdade de Medicina, publicando os resultados na renomada revista científica britânica Nature, um artigo que demonstrou o efeito do diurético furosemide no transporte de cloreto nos túbulos renais, um dos fármacos de ação diurética mais utilizado até até hoje na prática clínica. Giebisch sempre dizia: “Você é o único no mundo que sabe fazer essa técnica, de microperfusão, de dosagem de potássio com microeletrodos”.

 

 

Contribuições para a sociedade científica e política universitária 

 

Paralelamente ao trabalho de bancada, Malnic teve uma representatividade muito significativa na comunidade científica. Ele presidiu a Sociedade Brasileira de Biofísica, de 1983 a 1985; a Sociedade Brasileira de Fisiologia, SBFis, de 1985 a 1988; e a Federação de Sociedades de Biologia Experimental, FeSBE, entre os anos de 2003 a 2007.

 

 

Foi membro titular da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências do Estado de São Paulo e da Academia de Ciências da América Latina. Fez parte do Corpo Editorial das revistas científicas de seletiva política editorial, tais como Kidney International, Brazilian Journal of Medical and Biological Research, American Journal of Physiology, and Physiological Reviews.

 

 

Na USP, atuou na gestão universitária como Chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica, foi Diretor do ICB, de 1989 a 1993, e Diretor do Instituto de Ensinos Avançados (IEA) da USP, de 2003 a 2005. Recebeu títulos de professor honorário do IEA e de Professor Emérito do ICB, em 2013, além de atuar como Vice-Presidente da ADUSP.

 

 

Honrarias

 

Malnic foi meritoriamente agraciado com muitas honrarias. Dentre elas, destacam-se:

 

  • Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico – Presidência da República do Brasil – em junho de 1995;
  • Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico – Presidência da República do Brasil – em agosto de 2000;
  • Medalha G.A. Borelli, Universidade Frederico II, Napole, Itália;
  • Medalha CAPES 50 Anos – CAPES/MEC – em julho de 2001

 

Ao longo da sua admirável carreira científica, Malnic foi responsável pela formação de mais de 20 doutores, pela publicação de mais de 150 artigos científicos publicados em renomadas revistas científicas internacionais, dois livros e 13 capítulos de livros. Sem dúvida, Malnic se tornou uma das principais referências da fisiologia renal no Brasil.

 

Fora da ciência, Malnic tinha uma grande paixão pela literatura, arte e música, especialmente ópera. Malnic também adorava acompanhar partidas de futebol; ele era Santista.

 

Malnic foi casado com Margit Petry Malnic, Professora e tradutora da Faculdade de Filosofica Letras e Ciêcias Humanas da USP. Pai de duas filhas, a musicista e arranjadora Beatriz Malnic, que atualmente mora nos Estados Unidos, e Bettina Malnic, professora associada do Departamento de Bioqúimica do Instituto de Qímica da USP, e avô de três netas, Helena, Alice e Gabriela.

 

 

“Professor Malnic,

Em nome de todos, nós do Departamento de Fisiologia e Biofísica agradecemos por ter feito parte da nossa história, assim como do nosso Instituto e da nossa Universidade. Sua dedicação à ciência, especialmente à fisiologia renal, ao longo de tantos anos inspirou, estimulou o senso crítico e despertou a chama investigativa de muitos estudantes e colegas que tiveram a oportunidade de trabalhar com você. Obrigado por escolher o Brasil para semear toda sua sabedoria e contribuição no campo científico e acadêmico. Seu legado jamais será esquecido!

Todos sentiremos sua falta, muito mais do que as palavras possam expressar. Você não foi apenas um cientista importante e grande em muitos aspectos acadêmicos, mas uma pessoa genuinamente agradável e otimista. Saudades…”